Quanto aos Óscares em si não há muito a dizer. É uma instituição da indústria cinematográfica, cujo papel acaba por ser mais "político" do que outra coisa qualquer, quer no âmbito da própria indústria, quer no outro, mais lato e abrangente. Veja-se, por exemplo, o caso do Óscar para Melhor Filme de Língua Estrangeira, atribuido ao Irão (com quem as relações, não só com os Estados Unidos mas também com a Europa e alguns países vizinhos do galardoado, têm andado bastante tensas). Ora um Óscar oferecido pelos americanos é um excelente bálsamo para aliviar alguma dessa tensão e tirar um pouco a aura de mauzões àqueles tipos, afinal simpáticos, que nos fazem lembrar algumas aventuras do Asterix. E com isto não digo que o filme iraniano não tenha merecido o Óscar. Não o vi nem aos seus concorrentes, portanto é uma avaliação paralela da qual, para já, me vou abster.
Mas acima de tudo, os grandes vencedores dos Óscares de 2012 funcionam como duas faces de uma mesma moeda, uma espécie de opostos complementares que, quer nas suas diferenças, quer nas suas semelhanças, nos conduzem a uma inevitável reflexão sobre dois aspectos fundamentais: o Passado e a Europa. Veja-se como os dois filmes mais importantes da noite (tendo ganho cinco Óscares cada um) assentam toda a sua essência nestes dois pilares.
De um lado temos
Hugo (
A Invenção de Hugo) de Scorsese, um filme americano passado na Paris dos anos 30 e que, com base na obra literária que lhe deu origem, aproveita para fazer uma homenagem ao grande génio criador de Georges Méliès e ao período em que este realizou os seus filmes, o que nos faz recuar ainda mais no tempo, pois Méliès abandonou o cinema após 1913, pouco antes do início da 1ª Guerra Mundial (atenção ao facto de, ao contrário daquilo que já ouvi muitas vezes por parte de pessoas que viram este filme, este não ser acerca de Georges Méliès, mas sim baseado num livro de Brian Selznick, intitulado
The Invention of Hugo Cabret, uma história fantástica na qual Méliès entra como personagem de destaque e que Selznick teve o cuidado de retratar com algum rigor no seu enquadramento histórico).
Do outro lado temos The Artist (O Artista), de Michel Hazanavicius, um filme franco-belga passado na Hollywood do final dos anos 20, aquando da transição do cinema mudo para o sonoro, uma das transformações mais importantes na História do Cinema (com um impacto muito mais radical do que o aparecimento da cor, por exemplo), quer do ponto de vista dos criadores, quer para o público. Mas em especial, esta revolução tecnológica representou o fim da carreira para muitos actores que, sendo estrelas maiores do mudo, simplesmente não conseguiram adaptar-se à transição para os talkies, drama retratado com brilhantismo e excelência em Sunset Blvd. (Crepúsculo dos Deuses) de Billy Wilder, a quem curiosamente, ou talvez não, Hazanavicius agradeceu três vezes no seu discurso final.
Dá-se assim um curioso intercâmbio entre a Europa e os Estados Unidos, em que uns desejam encarnar a identidade dos outros e ambos enquadrados num período histórico semelhante, o que é no mínimo curioso e sintomático dos tempos que correm. Mas mais curioso ainda é verificarmos que o filme menos dispendioso (The Artist, que custou apenas 15 milhões de dólares) leva para casa os Óscares mais sonantes no que toca à criação artística, tais como Melhor Filme, Melhor Realizador, Melhor Actor Principal, Melhor Guarda-Roupa e Melhor Banda Sonora Original. Já o filme mais oneroso (Hugo, que custou cerca de 170 milhões de dólares, mais de dez vezes mais que o seu rival) foi recompensado pelo seu enorme investimento, tendo arrecadado as estatuetas mais importantes do ponto de vista técnico: Melhor Fotografia, Melhores Efeitos Visuais, Melhores Efeitos Sonoros, Melhor Som e Melhor Direcção Artística.
Assim temos, através do cinema, um resumo rigoroso e metafórico daquilo que se passa no mundo actual. Os Estados Unidos e a Europa de mãos dadas como único caminho possível para um futuro menos sombrio; o final dos anos 20 e os anos 30 como alerta e memória de um período de viragem que transformou, não só o cinema, como o mundo; e um filme mudo, a preto e branco que custou uma fracção do seu vencido rival, a reunir o consenso da Academia e do público, deixando uma mensagem (para mim vital e quem sabe a mais importante nos dias que correm):
Talvez baste de filmes cheios ruído em que se gastam cada vem mais e mais milhões em efeitos e distracções, numa tentativa desesperada de esconder o simples e triste facto de por detrás de tudo aquilo não haver história, nem alma, nem nada de essencial para se dizer, apenas duas horas de imagens e sons gratuitos, que nos alienam do mundo adverso que nos espera lá fora, sem que deles saiamos mais fortes ou cheios de inspiração e coragem para vencer esse desafio permanente que é a vida.